Santa Júlia, Virgem e Mártir
(† 450)
Era no ano de 439, que os vândalos, chefiados pelo rei Genserico, tomaram a cidade de Cartago. Com a crueldade que lhes era peculiar, unindo-a ao fanatismo sectário de tiranos que eram, maltrataram os católicos, profanaram os templos, trucidaram os sacerdotes e venderam os cidadãos como escravos. Foi esta também a triste sorte de Júlia, filha de pais nobres, tão admirável por sua formosura raríssima, como pelas virtudes verdadeiramente cristãs que lhe adornavam o coração. Venderam-na a Eusébio, negociante sírio e pagão. A mudança tão radical nas condições de vida; da abastança à pobreza, da veneração ao desprezo, da independência à obediência, da liberdade à escravidão, teria abalado um coração menos forte e privilegiado. Foi nas verdades da santa Religião e nas promessas do cristianismo, que Júlia achou um escudo amparador contra estes desapiedados golpes do infortúnio. Foi no grande amor a Jesus Cristo, na lembrança de sua pobreza, obediência, humilhação, Paixão e Morte, que encontrou o maior estímulo a uma paciência heroica.
Pela mansidão e modéstia, como pela atividade e habilidade extraordinárias, fez-se Júlia merecedora da maior estima do senhor, e ninguém teria ousado importuná-la. Os seus lazeres eram dedicados oração ou à leitura espiritual. Quando se sentia oprimida pela tribulação, tristezas ou tentação, beijava um pequeno crucifixo, que trazia escondido no seio e dizia: "Ó meu Jesus, Vós quisestes sofrer, para assim poderdes entrar na vossa glória; compadecei-vos de mim e ajudai-me a sofrer por Vós. Alegremente quero levar os grilhões da escravidão, que me tornaram semelhante a Vós e me preparam o caminho da salvação". Sempre contente e resignada, jejuava todos os dias, com exceção dos domingos, fugia de todos os divertimentos, para alcançar de Deus a graça de conservar a pureza do coração.
Passados uns anos, Eusébio fez uma viagem à Europa e levou consigo diversos escravos, entre eles Júlia. Chegados à ilha Córsega, foram testemunhas de uma grande solenidade que os pagãos celebravam em homenagem aos deuses nacionais. Eusébio e a comitiva entraram no templo, para de perto poderem presenciar os atos culturais. Júlia, porém, ficou na entrada, onde se ajoelhou e, braços em cruz, rezou em voz alta, pedindo a Deus se apiedasse das pobres almas dos idólatras e as conduzisse ao conhecimento da luz da verdade. Chamou atenção tal procedimento e perguntada por uns oficiais do governador, porque não entrava no templo, Júlia respondeu: "Cristã que sou, adoro só a um Deus e não ofereço sacrifício a ídolos, que nenhuma veneração merecem". Os oficiais incumbiram-se de relatar ao governador Félix que entre a comitiva de Eusébio, havia uma donzela cristã formosíssima, que falava desdenhosamente dos deuses da terra. Ao ouvir isto, Félix, inimigo figadal do nome cristão, concebeu o plano de apoderar-se da escrava Júlia. Para esse fim convidou a Eusébio para um banquete. "Porque toleras, perguntou-lhe, que tua escrava Júlia despreze os deuses nacionais, e adore o Deus dos cristãos?" — "Vãos tem sido os meus esforços", desculpou-se Eusébio — "de fazê-la abjurar a fé. Ela preferiria morrer a abandonar a sua religião. Não mais insisto, porque é muito fiel, de uma habilidade extraordinária, em uma palavra: a pérola entre as minhas escravas".
Bastaram essas referências elogiosas, para no espírito de Felix incendiar-se o fogo de violenta paixão pela escrava. Para obtê-la, propôs ao negociante um preço elevadíssimo ou trocá-la por quatro das suas escravas mais formosas. Eusébio, porém, não a entregou. "Inúteis são as tuas insistências. A tua fortuna inteira não chegaria para adquirir esta joia", disse ao Governador.
O que não pôde conseguir pelo ouro, Felix tentou-o pela astúcia. Convidando a Eusébio outra vez para um grande banquete, determinou que os vinhos mais deliciosos lhe fossem servidos, por escravas de aparência e modos os mais sedutores. Eusébio caiu no laço, e vendo-se destituído completamente das faculdades mentais, Félix mandou que lhe trouxessem à força Júlia à sua presença. Acostumado a ver satisfeitos todos os caprichos e, julgando que toda mulher, ainda mais uma escrava, lhe devia estar às ordens, começou por elogiar a bondade, mocidade e formosura de Júlia, lastimar-lhe a triste sorte de escrava e acabou por prometer-lhe a liberdade se quisesse sacrificar aos deuses. Júlia respondeu-lhe: "Eu sou livre; enquanto servir a Cristo neste mundo, não desejo para mim outra liberdade a não ser esta, de amar a Deus único verdadeiro e servir-lhe na simplicidade do meu coração. Desprezo os vossos deuses, e só o pensamento de lhes oferecer sacrifícios horroriza-me; prefiro morrer pela minha fé".
A resposta de Félix a esta declaração franca foi uma brutal bofetada no rosto de Júlia, que logo em seguida sofreu uma forte hemoptise. "Meu Jesus e Salvador" — respondeu ela com mansidão — "também foi esbofeteado; como é que mereço poder compartilhar esta ignomínia?" Félix, cada vez mais enfurecido pela constância da virgem, ordenou que se lhe aplicasse a tortura e fosse flagelada. Júlia, elevando os olhos para o céu, exclamou: "Ó Jesus, Vós fostes cruelmente açoitado e coroado de espinhos; sede louvado e agradecido, por Vos terdes dignado de tornar-me semelhante a Vós no martírio". Entre as aplicações da tortura, Félix repetia a proposta: "Renuncia a tua fé, sacrifica aos deuses e nada mais sofrerás".
Júlia respondia com a mesma constância: "Nunca o farei, ainda que fosse, como Jesus, crucificada". — "Pois não" replicou o tirano — "terás o que desejas".
Os verdugos trouxeram uma cruz e Júlia foi, como Nosso Senhor, pregada na cruz. Ó milagre da graça divina! Júlia, no auge da dor corporal, agradeceu a Deus de ter-se dignado fazê-la sofrer tormento igual ao de Jesus Cristo e, como o divino Mestre, pediu perdão para os algozes. "Ó meu Deus! Aceitai este meu sacrifício e tende misericórdia dos meus assassinos". Depois de algumas horas de atrozes sofrimentos e de uma agonia dolorosíssima, Júlia entregou a alma a Deus. Pessoas que lhe assistiram à morte, viram-lhe a alma, em forma de uma pomba branca, subir ao céu.
Quando Eusébio acordou do seu torpor, mais nada lhe restava fazer em favor da fiel escrava.
Monges piedosos sepultaram o corpo da santa mártir numa igreja em Gorgena. Desidério, rei dos Longobardos, determinou a transladação das santas relíquias para Bréscia, no ano de 763.
Reflexões
Santa Júlia diz-se feliz de poder sofrer e morrer como Nosso Senhor. Ficar semelhante a Jesus Cristo, é um sinal de eleição. Tens o mesmo motivo de alegrar-te? Esforças-te por ser semelhante ao teu Divino Mestre? Em que consiste a semelhança entre ti e Jesus? Jesus foi obediente e submisso à sua santa Mãe e a S. José; foi obediente, até à morte, ao eterno Pai. E tu não obedeces nem aos teus pais e superiores, nem à Igreja, transgredindo-lhes os preceitos. — Jesus Cristo é o modelo de mansidão e humildade. E tu és áspero e duro contra o próximo, és orgulhoso e arrogante. — Jesus Cristo era amigo da oração: noites inteiras passava-as rezando. E tu foges da oração e se rezas, muitas vezes é sem atenção, sem devoção e sem humildade. — Jesus Cristo jejuou quarenta dias e quarenta noites. E tu te queixas do pouco jejum e da abstinência, que a Igreja te impõe. — Jesus Cristo sofreu as maiores injúrias, as dores mais atrozes, com uma paciência admirável. E tu te impacientas com a menor contradição, a mais leve contrariedade, e quando tens de sofrer algum incômodo ou doença, queixas-te amargamente de Deus e dos homens. — Jesus Cristo perdoou aos inimigos. E tu tens pensamentos de ódio e vingança e mui dificilmente te resolves a perdoar. É isto conformidade com Jesus Cristo? Se continuares deste modo, é certo que não serás dos eleitos. Começa ainda hoje a imitação prática das virtudes de Jesus Cristo, para tornar-te cada vez mais semelhante ao seu Coração.
Santos, cuja memória é celebrada hoje
Na França, o martírio do bispo S. Desidério, (St. Didier). Tendo repreendido a rainha Brunhildes por certas desordens por ela provocadas, caiu morto sob os golpes de sicários da monarca, que por sua vez morreu assassinada pouco tempo depois. O túmulo de S. Desidério em Prissignac é até hoje visitado por milhares de fiéis, que ao Santo se dirigem para ficarem livres da febre.
Na Espanha, os bispos-mártires Epitácio e Basiléo.
Na Capadócia, muitos mártires, vítimas da perseguição de Maximiano Galério. Foram-lhes primeiro quebradas as pernas, para depois receberem o golpe mortal.
Na Mesopotâmia, muitos cristãos, que sofreram horrível martírio. Amarrados a morrões, a cabeça para baixo, foram mortos a fogo lento.
Em Roma, o grande apóstolo da caridade, João Batista de Rossi. 1764.
Referência: Na luz Perpétua, 5ª. ed., Pe. João Batista Lehmann, Editora Lar Católico – Juiz de Fora – Minas Gerais, 1959.
Comemoração: 23 de maio.
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